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A incrível Vanderlândia

Ainda em Jericoacoara, tem um restaurante bem normal chamado Tranquilo onde trabalha a garçonete nada normal chamada Vanderlândia. Se há um bar favorito e um restaurante favorito, Vande é minha pessoa favorita de Jeri. Eu poderia contar toda a história, construir a personagem e então chegar ao ápice. Mas o ápice é tão lindo que vou contar só ele.

Foi assim:

Na mesa ao lado, Vanderlândia atendia dois italianos (cheeseburgers e Coca-Cola) quando, do nada, do nada mesmo, suspirou e disse:

– Ai, que lindo.

Os caras olharam com cara de ‘cosa?’. E ela repetiu com um sorrisão:

– Che bello!

E os caras com cara de ‘cosa?’.

Ela virou pra mim, suspirou e mostrou as mãos dizendo:

– Não posso com guardanapo novo. Eles são tão lindos.

Ela estava segurando metade de um pacote de guardanapo de papel, para colocar na mesa dos italianos lambuzados de maionese do cheseburger com Coca-Cola.

Talvez olhos hiperexpostos à beleza óbvia do mar e das dunas sejam mais afiados para as singelezas

Jeri-coacoa-quá-quá-quá-rá-rá-rá-rá

Já botei cerveja no congeladoooor...

Muita areia, muito vento e muita música ao vivo. A dupla areia+vento é defeito/qualidade. Enche o saco, chicoteia a batata da perna quando você tá andando na praia, chicoteia suas costas quando você senta na praia e chicoteia sua cara quando você tenta ler na praia. Por outro lado, ela enche os olhos (no sentido poético, embora no literal também aconteça) quando tá toda empilhada formando dunas ou quando escorre feito líquido pela encosta da duna ou quando faz você ter certeza que a duna é de nuvem porque a areia tá ali voando e parece que a duna não tem um limite exato de onde ela termina e começa o céu, bem nuvem mesmo. Daí ela chicoteia sua canela, porque, afinal, enquanto você brisa na duna/nuvem, vento/areia castigam sua batata.

Já a música ao vivo é só defeito mesmo. Ela enche o saco e ponto. No primeiro dia é até engraçadinho ouvir o Black Power, um músico com apelido autoexplicativo, cantando “Burguesinha”, “Mangueira” e todas as outras músicas do Seu Jorge intercaladas a discursos para “passar uma mensagem”. Mas aí você sai do bar e vai pro outro e ele tá lá. E no outro também. E assim por diante. O Black Power que canta Seu Jorge é a prova daquele ditado que diz que caiçara brota da areia. Como aqui, como já dito, tem muita areia, ele brota umas cinco vezes ao mesmo tempo em bares diferentes.

Pior ainda é quando não é ele e você fica com saudade dele, porque sempre pode ser pior e o cara pode tocar mal e cantar sofrivelmente. E quando você percebe que está lamentando que a música ao vivo não é com Black Power descobre que o problema é a onipresença absoluta da música ao vivo. Daí só resta lamentar que em dez dias em Jeri é difícil lembrar de ter ouvido o barulho do vento.

E esse é o único verdadeiro defeito do lugar — embora eu pudesse gastar algumas linhas reclamando de algumas outras coisas, mas seria ranzinzice. O resto é só beleza, boa comida e bom humor.

Dadas as impressões gerais, algumas pontuais, caso você algum queira ir para lá sabendo quais foram as minhas preferências.

Os bares da praia são bem diferentes entre si. O See Sea Jeri é legalzinho, tem mesas octógonais e é bem posicionado. Drinks e porções nada demais. O cardápio em italiano oferecendo uma “caipitália”, feita com grappa, dá a entender que o dono é italiano. O Bar do Alexandre é um terror. Fuja. É bem lá que você corre o risco de sentir saudade do Black Power. Aliás, se sentir saudade do Black Power é só ir ao See Sea, que um deles toca lá o tempo inteiro.

O bar da pousada Capitão Thomaz tem um ar de “o capitão Thomaz saiu pro almoço e os marujos tomaram conta de tudo”. Os garçons fazem o que querem, ouvem o que querem, fecham o bar no auge do movimento e outras anarquias quetais. A boa é que os caras têm bom gosto musical. Ali você corre o risco de passar a tarde ouvindo Beatles.

O melhor bar da praia é Beco do Caranguejo, o QG da resistência. É o único que cobre as mesas com toalhas coloridas feitas pelas crocheteiras de Jeri. Nessas poucas mesas não há concessões para a padronização turística. Nada de som genérico pra agradar gringo, nada de ampliar as instalações, nem música ao vivo ele tem. No Beco do Caranguejo tudo é tudo bem e os garçons explicam, com orgulho, que a goma de mandioca usada pra fazer tapioca ali é comprada de uma senhorinha que faz em casa, ‘Porque essas de mercado não prestam’. Na verdade, esse bar talvez não tenha nada demais, é apenas um boteco simpático. Mas como ele está cercado por outros, que são todos meio nada, acaba ficando bem especial.

Mesa do Beco

Agora, o melhor bar de Jeri, o melhor dos melhores, o mais incrível e maravilhoso (e para entender essa definição, sugiro a leitura do post logo abaixo), é o bar do Chagas. Eu não vou nem tentar explicar como ele é, porque minhas habilidades narrativas e descritivas não bastam. Detalhe importante: ele fica longe da praia, não tem porções e quase sempre é preciso chamar umas cinco vezes pelo Chagas para ele apareça. Mas uma vez que ele aparece, seja bem-vindo a Jeri.

Há muitos restaurantes em Jeri e em todos a que fui a comida era pelo menos honesta. Meus dois favoritos foram esses:

O Pimenta Verde é, considerados os aspectos técnicos, o melhor restaurante da vila. A comida é excelente. Para entender a graça do restaurante, peça o filé matuto. Um prato bem simples, bem típico e executado com capricho comovente. A apresentação é de restaurante chique e o preço é justo (algo em torno de R$ 20 para um prato mais do que bem servido). Só não é meu favorito por uma questão de coerência (quem elege o bar do Chagas como o melhor de Jeri não pode decidir que o Pimenta Verde é o melhor restaurante, simplesmente porque existe a Peixaria Brasil).

E quanto à Peixaria Brasil… que lugar inacreditável essa casa verde, de esquina, com as paredes pintadas com uma imagem de um pescador segurando um peixão e as instruções: escolha seu peixe, polvo ou lagosta e espere ele ser assado na churrasqueira montada na calçada. O acompanhamentos são ‘deliciosa comida caseira’.

Todos os atendentes são da mesma família, o clã do seu Guaxelo, o pescador representado na pintura da parede. O Guaxelo é um senhor barrigudo de bermuda de náilon branca e aquela cara entre safada e perdida que eu acho que ensinam para os pescadores na escola de pescadores. “Aula 1: Técnicas de olhar para cima e para o lado e ainda assim ver o que acontece à sua frente”.

O serviço é péssimo, a casa não aceita cartão e vive lotada. Há duas explicações possíveis, e provavelmente a resposta é ambas. 1. A comida é maravilhosa. 2. É restaurante-sitcom.

Os quinze, ou onze, não lembro, filhos do Guaxelo atendem e desatendem e se atrapalham e brigam entre si e bufam com a mãe e tomam bronca do pai (bronca de pescador, “Aula 2: Como dar bronca usando apenas os olhos e sem deixar de ver o que acontece à sua frente”).

Se você não tomar as rédeas da situação, não vai jantar. O primeiro passo é achar uma mesa, muitas são compartilhadas e você pode pedir licença e sentar com estranhos. Depois, é preciso laçar um garçom e pedir uma cerveja. Aí, levante-se e vá até a peixaria, que é encostada ali do lado, e escolha seu peixe. Eu queria polvo. O cara disse: “O polvo é de ontem… não tá fresco, pega o peixe que é de hoje e ainda não foi congelado”. Escolhido o peixe, ele é pesado e vai pra grelha. Daí é só laçar o garçom de novo e pedir mais uma cerveja e os acompanhamentos (salada, purê de mandioca, mandioca frita, farofa, o que você quiser). O quilo do peixe custa R$ 30. Pra dois, basta. Cada acompanhamento custa entre R$ 6 e R$ 8 na versão média. E basta um, dois se a fome for grande. Daí é só esperar o peixe chegar (a fila da churrasqueira costuma ser grande, assim como a espera) e se divertir com as trapalhadas da Família Guaxelo.

Aproveitando o tema Guaxelo, eu tive uma incrível interação com ele alguns dias depois do jantar, quando fui lá comprar cigarros (a casa fica aberta durante o dia como mercearia e é dos poucos lugares que vendem Marlboro). Entrei e me dirigi ao balcão (eu já tinha comprado cigarro ali antes, da senhora Guaxelo, um docinho, que parou de cortar a macaxeira do jantar para me atender e explicar que, sim, o cigarro tinha sobretaxa porque ela comprava lá em cima e vendia cá embaixo). O Guaxelo me viu entrando e entrou também.

Eu disse: eu quero um Marlboro.
Ele disse:
– Pegue lá o Marlboro pra menina.

Só que nenhum de seus muitos filhos estava ali. Na verdade, só estávamos eu e ele. Então eu mesma peguei o cigarro, que ficava em cima do balcão. Dei o dinheiro (R$ 10, o cigarro custava R$ 6). E ele disse:

– Pegue lá o troco da menina.

Mas, como já dito, nenhum de seus muitos filhos estava ali. Ficamos os dois em silêncio, porque eu não podia simplesmente abrir a gaveta de dinheiro do cara e tirar meu troco de lá. Silêncio. Ele olhando pro alto e pro lado com minha nota na mão.

Silêncio.

Não apareceu ninguém. Então ele foi para trás do balcão e começou a pegar o troco. E disse:

– Pegue lá R$ 2 pro troco da menina.

Eu já não conseguia mais conter o quase-riso. Ele notou. Sorriu e ficou com cara de criança pega na traquinagem.

Deu uma nota de R$ 5 e disse: depois, se passar aqui, você me dá R$ 1. Saí do lugar e pedi R$ 1 pro Rafa, voltei e entreguei pra ele, que ainda estava olhando para cima e para o lado diante da gaveta de troco aberta.
Eu disse:

– Aí.

E trocamos sorrisões.

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Por todas as esquisitices

Nossa senhora que lugar bonito

Não faz nem meia hora eu me vi diante de um desses meus gostos que eu tenho que confirmam pra mim que sim, faça o que eu quiser, vá eu para onde for, sofistique-me, complique-me, requinte-me, sou uma caipira das grossas.

Estou em Jericoacoara e as opções de banho aqui vão do glorioso mar emoldurado por dunas às gloriosas e azuis lagoas emolduradas por dunas passando por outras lagoas e outras praias e terminando na honesta piscina do hotel, cercada por lindas primaveras com flores dos mais distintos tons.

Pois bem hoje, meu último dia aqui nesse paraíso tropical luxuriante, eu fui tomar uma ducha no hotel e abri o sorrisão. Foi, de longe, disparado, sem discussão, o melhor banho que eu tomei. A ducha fica do lado do tanque onde as funcionárias do hotel lavam as coisas. Dá pra ver um canto da duna entre os galhos de um pé de hibisco. O chãozinho da ducha, menor — bem menor — que o box lá de casa é de azulejo amarelinho, em volta é tudo areia. Na frente tem o tal pé de hibisco, no fundo a duna, do lado o tanque e na parede uns vasos com umas plantas dessas de folha mesmo. Eu fiquei feliz com a luz brilhante do fim da tarde e a água fresquinha entrando pela minha cabeleira sem deixar um rastro de areia por onde passa, a água batendo no azulejinho amarelo do chão e respingando depois na areia, o sabão azulzinho descansando no tanque. Foi o melhor banho que tomei em Jeri.

Continuo caipira, faço pouco do mar, prefiro rio e, pra mim, numa casa de veraneio, basta uma boa ducha, um bom chuverão ou um belo dum corguinho.

Não espero ser compreendida nessa caipirice de preferir o chuveiro à exuberante paisagem da praia. Sei que é tosquice pura. Só peço um sorrisinho de ‘que doida’. O Rods, em quem eu pensei umas quinze vezes nesses dez dias de idílio tropical, adora contar pra mim (fingindo que tá contando pros outros) uma história que tem a ver com essa.

Foi assim. A gente foi passar um Réveillon no Rio e pra mim a coisa toda foi uma tortura. Com todo respeito aos amigos cariocas ou que vivem no Rio ou adoram o Rio. Eu não gosto muito de lá não, não por causa de nada de lá especificamente (a cidade é obviamente linda, a comida é deliciosa e tudo e tal), mas é que eu sempre me sinto muito trouxa.

Lá estava eu me sentindo trouxa e talvez ainda mais trouxa por não morrer de amores pela praia, o que me era lembrado a cada vez que, bem, a cada vez que íamos à praia. De manhã, fim de tarde, aquela papagaiada toda. O meu mau-humor só aumentando, aumentando, aumentando. Se não virasse o ano, eu teria explodido a cota de catota espiritual naqueles últimos dias de… de sei lá que ano que era já nem lembro mais.

Pois no dia 1, o primeirinho dia do ano seguinte àquele, o Rods precisava achar uma borracharia pra dar um jeito no pneu do carro dele que tinha estourado na vinda e agora ele precisa arrumar pra volta. Me voluntariei pra ir junto, ele mal acreditou. Saímos da Urca, onde estávamos hospedados, e fomos em busca da missão de achar um borracheiro carioca funcionando na manhã do dia um.

Só isso já me deixava mais bem humorada, em parte pela besta rivalidade entre paulistanos obcecados por trabalho e cariocas (se fosse em São Paulo, meu borracheiro atenderia na hora, certeza, na mesma rua, sem pestanejar, já aqui nessa espécie de selva hedonista… Eu sou super a favor de selva e super a favor do hedonismo, mas essa rivalidade besta é daqueles prazerezinhos deliciosos tipo cutucar pelinha no canto do dedo), em parte pelo aspecto gincana (ache um borracheiro funcionando no Rio na manhã do dia primeiro de janeiro. A prova vale cem pontos, valendo!).

Achamos, o Rods foi lá resolver o pneu e eu fiquei conversando com um guardador de carros gordão, com a maior barriga que eu já vi, e ele me contou coisas maravilhosas do funcionamento do mundo dos guardadores de carro da Lapa, me explicou a rotina dele e como as coisas tinham mudado, vinham mudado e ainda iam mudar mais, porque é assim que é. Eu fiquei lá de trololó, com um humor ensolarado e renovado. E quando o Rods, voltou, pneu colado com chiclete, ficou muito impressionado.

E ele sempre dá um jeito de contar essa história pra alguém na minha frente, como um exemplo ou a. de quanto eu não gosto de praia (o que nem é taaanto verdade assim) ou b. do quanto eu sou esquisita. Mas sempre que ele conta pra alguém essa história na minha frente eu fico com a sensação de que ele tá contando ela de novo pra mim, pra me lembrar de a. como ele gosta de mim por essas coisas e b. quanto eu gosto dele por essas coisas.

Enfim, viva a ducha do lado do tanque! Viva o borracheiro da Lapa! E um grande e ruidoso viva para todas as esquistices minhas, suas, delas, deles e todas.

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