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Sempre pode ser gases (mas acho que não é)

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Prólogo
A última vez que contei alguma história aqui – lá se vão quase três meses – foi uma história bonita, mas meio superficial, embora, claro, eu tenha tentado extrair dela o suprassumo do que o momento pedia.

Se eu soubesse que hoje estaria lendo sobre o fechamento das fronteiras norte-americanas para cidadãos de sete países de maioria muçulmana, teria logo chutado a canela daquela véia louca e dado início à barbárie só para ser avant garde. Mentira, jamais faria isso. Mas eu tava otimista naquele dia. Hoje não dá pra estar.

Porém. However (Ráu-éver, eu tô aprendendo inglês, me deixa). Véi, porém… aconteceu tanta coisa de lá pra cá, que se eu pudesse escrever do jeito que Splash, Uma Sereia em Minha Vida faz pra ler, eu mandava ver e todo mundo que ainda insiste em acompanhar esse blog (<3 amo vcs) ficaria com os olhos marejadinhos comigo. (Pra quem não tem a referência, a Splash Uma Sereia Em Minha Vida coloca o braço no meio do livro e lê tudo de uma vez só.)

Vamos ao que interessa
Vou contar só uma, em nome da história desse Caracteres, sempre tão dedicado à escatologia, aos encantamentos e ao amor.

Vamos chamar os personagens de a mina (claro que sou eu) e o cara (óbvio, meu namorado). Contexto: o namoro tem 8 meses, mas somando todo o tempo que passamos juntos dá 25 dias. Menos de um mês. Namoro à distância, cada um num canto do mundo, deu pra sacar, né, blz.

A mina e o cara vão ficar juntos por uma semana. Ela foi pra casa dele, numa cidade remota no inverno setentrional. No segundo dia, eles decidem caminhar au bord de la riviére, ir a um dive bar e encher a cara. Na volta pra casa, bem bêbados, ela peida. Inverno setentrional. "Ela peida" o caralho…, peidei. O peido fica preso no casaco, e sai meio pelo pescoço e o cara exclama:

– Que fedô!
– Deve ser o rio (malandra, repertório Tietê)
– Estranho, o rio nunca fedeu (sim, estamos a mais de 8 mil km de SP)
– É estranho, mas, voltando, o alfabeto frígio afinal deriva do grego?

Assunto encerrado. Corta. Dois dias depois é noite de Réveillon. Eles estão em outro dive bar, que ele chama de neighbourhood pub (aqip, eu posso explicar as categorias em pvt, só mandar inbox). Óbvio, é Réveillon, e a ideia é ficar bêbado. Eis que… bate um… fedô.

– Que fedô! (mas desta vez é a mina, eu, que reclama)
– Nossa, verdade, terrível. A gente sentou perto do banheiro
– Verdade, que cagada. (Risos.)
– Cagada, mas, voltando, o alfabeto frígio é contemporâneo ao grego.

Corta. Cinco dias depois. Hora de despedir. No carro a caminho do aeroporto, ele diz.

– Preciso contar um segredo.
– Hm?
– Lembra no Réveillon, que a gente sentiu um cheiro de merda porque tava perto do banheiro?
– Lembro.
– Eu peidei.

Ah, meu, mano, véi. Eu, euzinha, autora dos manifestos mais escatológicos, do MLP, da Solitária Pride. Eu, ali, ouvindo, derreti.

– Jura? Wow (uau). Lembra aquele dia que a gente tava andando na beira do rio e veio um cheiro de merda?
– Lembro.
– Eu peidei.

Risos.

Eu sei que não é sexy. Mas ainda bem, porque mesmo se fosse, não ia dar pra dar vazão ao tesão (a sequência dos acontecimentos foi: uber, aeroporto, vôos para distintas partes do continente, mensagens de celular). Mas, vai, se isso não é amor de vdd, eu não sei o que é. Quer dizer, sempre pode ser gases.

Aquela dor no peito, é verdade, ela sempre pode ser gases.

Mas, ai, acho que não é.

Tomara.

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A imagem que ilustra o post, veja que belissima escolha, ela mescla a ideia de inverno setentrional à de peido rosa de amor, é da fotógrafa Maria Lax e está à venda aqui.

É, tatuagem é permanente

Quando eu tinha 18 anos, eu era anarquista. Autoridade, hierarquia, até as fronteiras entre países, tudo isso me sufocava. Eu desejava um mundo sem poder centralizado em figura nenhuma, nem Estado nem Mercado. Odiava tudo que impusesse algo. Queria ser livre.

E na minha imensa profundidade de então (de lá pra cá consegui ficar ainda menos profunda), decidi que o símbolo da opressão era a lei da gravidade. Essa maldição que nos mantinha presos ao chão. Ela era a prova última de que nunca seríamos livres (e daí vieram mil delírios de fazer mudança para o espaço sideral, único lugar em que se experimenta a liberdade total. Ainda sonho com o dia que poderei experimentar a ausência da gravidade, mas hoje já não tenho mais angústias infinitas quando percebo que estou colada ao colchão quando deito para dormir – acredite, isso era o motivo de muita angústia na minha profunda alma adolescente e anarquista).

Como além de ser livre eu queria muito ser engraçada, eu também me afiliava intelectualmente aos abolicionistas penais, um grupo que previa a extinção de todas as leis – “inclusive a da gravidade”, dizia eu, com um sorriso meio ensaiado, misturando um grupo de estudiosos sérios a uma ideia de desenho animado (eu tinha assistido um episódio de A Vaca e o Frango ou Eu Sou o Máximo, não lembro mais, em que os personagens viravam legisladores e revogavam a lei da gravidade e tudo voava, depois eles revogavam a lei apenas para vacas, apenas para geladeiras, apenas para isso, apenas para aquilo, e tudo ficava caindo e voando, era engraçado).

Parêntese:
Eu deveria esperar fazer 36 anos para escrever este texto. Porque a partir de lá vai fazer mais tempo que eu convivo com a tatuagem do que o tempo que eu não convivi com ela. Mas deu vontade de falar isso hoje, depois de ler este texto aqui.

Bom, meu anarquismo-abolocionista-penal somado à certeza de que eu deveria sempre lembrar da angústia de não ser livre me fizeram tatuar nas costas um par de asas.

Quác! diria eu, hoje, desafiando a Helô de 18 anos a revisar a falta de lógica desse salto de pensamento. E quác, eu digo, às vezes, quando vejo as asinhas meio tortas, meio pequenas, meio desbotadas, uma delas tem até um erro mesmo, uma pena que começa direito mas termina errada porque na hora que a agulha bateu no osso da costela eu dei um pulo e o risco foi pro lado (tipo aquele comercial, lembra, de uma mulher que ia cortar o cabelo e o cara ligava a máquina e ela espirrava e ele cortava sem querer um monte de cabelo).

Mas por mais defeitos que essas asinhas tenham e por mais que às vezes eu pense que preferia ter as costas lisas, livres de desenhos e principalmente livres de desenhos com penas erradas, eu adoro o bilhete que a Helô-anarquista-abolicionista-penal-de-meia-tigela deixou pra mim. Esse bilhete-lembrete me faz sempre lembrar que imposições existem para ser contrariadas, que tudo deve ser questionado e, de preferência, mudado e, de preferência, para melhor (ainda hoje, tantos anos depois, eu me vi pensando, na janela, que quem diz que regras são regras esquece de notar que não existe nenhuma regra dizendo que as regras não podem ser mudadas, o que invalida, portanto, todas as regras. Percebam como a lógica dessa minha cabeça oca não evoluiu tanto assim).

A diferença é que aos 18 eu achava que todas as imposições eram pequenas prisões, jaulinhas doidas para conter um pedaço da minha vida. Hoje, vejo cada uma delas como um convite a um exercício de achar a brecha e ser livre. Parece que tudo virou ao contrário. Acho que a Helô de 18 anos se orgulharia de ler isso aqui. Do mesmo jeito que eu me orgulho do que ela escreveu nas minhas costas, embora, hoje, ache super cliché.

Dez anos depois, quando fui fazer a tatuagem que fica sobre o meu cotovelo direito, pedi para o tatuador dar uma olhada para ver se rolava cobri-las. Quando eu levantei a blusa e ele viu a tatuagem, soltou um:

— Ah, asinhas…

Ele falou algumas coisas sobre como teria de trabalhar para cobri-las e perguntou em que tipo de desenho eu pensava. Sem pensar muito respondi:

— Asinhas, sei lá, mais bem desenhadas.

Ele não entendeu nada, soltou um “outras asinhas?!”, fez uma cara engraçada e me disse tchau.

Elas continuam aqui. Decidi não cobrir e me recuso a apagar tatuagem, assim como eu não retiro o que eu disse (embora seja a primeira a pedir desculpas quase sempre). E apesar de preferir ser essa metamorfose ambulante, sei bem que o princípio que levou a pseudo-anarquista de 18 anos ao estúdio de tatuagem continua aqui inteirinho. Um pouco transformado pelos anos, talvez levemente amaciado, mas ainda assim aqui.

Músicos ou europeus

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Impressionante.

A bomba chegou por email. O assunto era “músicos ou europeus” e a mensagem trazia apenas um link. Cliquei e perdi o chão: era um anúncio de venda de um apartamento no meu prédio e lá estava a ordem de despejo. O texto dizia assim (era tudo caixa alta mesmo, um grito, um berro, uma expulsão):

“PRÉDIO ANTIGÃO NEOCLÁSSICO. PARA CLIENTES DIFERENCIADOS, ARTISTAS PLÁSTICOS, ARQUITETOS, INTELECTUAIS, MÚSICOS OU EUROPEUS.”

Ferrou. Somos uma jornalista, um designer e um bebê. Uma campineira, um brasilero e um micropaulistano. Uma brejeira, um saltimbanco e um carinha que a gente ainda não sabe o que vai ser. Era chegada a hora de amarrar a trouxa na ponta do cabo de vassoura e mudar de endereço. I don’t belong here, a frase lema de Creep ressoou bem alto. We don’t belong here.

O silêncio dominou nosso apartamento no prédião antigão. (Acho grosseirona essa descrição. Prefiro prédio antigo. Também detesto predinhoantiguinho, ouço isso dito numa voz fininha duma menininha chatinha segurando um caderninho com capa de passarinho. Que gracinha esse predinho antiguinho! Me dá vontade de dar um soquinho na boquinha. Mas voltemos.)

Eu estava me dando por vencida. Talvez meu lugar não seja esse mesmo, vi voltar essa nóia, sentimento de quem um dia quis fazer a vida na cidade grande. A gente sai da roça, mas a roça não sai da gente. Foi quando ele disse:

– Peraí, vê a metragem.

Eu pensei: metragem? Ou quilometragem? Minha cabeça já estava em Aiuruoca, Barreirinho ou Bichinho, Vinhedo, Valinhos, Joaquim Egídio. Acabou, já erá, um abraço. Descobriram tudo, fui pega, sou uma fraude, não deveria estar aqui, sou caipira pira pora, nossassenhora. Mas ele falou de novo.

– Helô, vê a metragem?

– Que metragem? Quilometragem?

– Do apartamento!

Fui ver. 164 metros quadrados. 164 metros quadrados! E a alegria voltou a reinar na jangada que é a nossa cama, onde estávamos esticados na preguiça dominical.

É que este predião antigão é formado por três blocos, um inho, um bloco e um cão. O bloquinho tem apês de 2 quartos. O bloco, de 3, é o meu, 130 metros quadrados. E o blocão, apês enormes, duas salas, três quartos e um quarto de empregada que abriga uma família inteira – claro, desde que não seja de ARTISTAS PLÁSTICOS, ARQUITETOS, INTELECTUAIS, MÚSICOS OU EUROPEUS.

– Acho que podemos ficar, ele disse. Se o blocão é para artistas plásticos e intelectuais, o nosso é para designers e jornalistas.

A quem interessar possa ou a quem possa se interessar, o anúncio é este.

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A mais crua verdade

Quem frequenta este blog há algum tempo sabe que sempre fui dada a escatologias e indiscrições, assuntos evitados, tidos como deselegantes, volta e meia apareceram aqui em destaque – como peido, solitária, depilação.

Basta ter estilo e garbo para falar de qualquer uma dessas coisas sem soar sensacionalista. Eu me lembro bem, numa Flip, em 2008, Humberto Werneck desfilou com elegância por esses assuntos em uma conversa com Xico Sá.

Sá, o pândego do Crato, estava daquele seu anarcojeito único, falando “daquela pelinha entre o cu e a buceta, aquela ali não tem nome”, quando Werneck, com a elegância marota dos mineiros, interrompeu delicadamente:

– Tem sim: períneo.

Sem corar, nem dizer palavrão, atribuindo uma naturalidade cristalina àquela parte tão escondida e desprezada do corpo. Dava vontade de interromper a interrupção e assuntar o períneo, qual é, como é, o que mais tem nome? Mas a mesa seguiu para outros assuntos e terminou com todo mundo saindo dali morrendo de vontade de ler o Santo Sujo, maravilhosa biografia de Jaime Ovalle que Werneck lançou naquela época.

Toda essa volta para dizer que nesse dia, nessa mesa, eu comecei a pensar nisso: dá para falar de tudo, de peido, períneo e pelagens, com graça e estilo, sem que esses temas-párias despertem o nojinho ou a vergonha associados a eles.

E eles já apareceram muito por aqui. E depois eu cansei deles. Comecei a achar que o mundo não estava pronto para falar abertamente sobre o desconforto que é segurar um peido. Comecei a achar que seria martirizada. Que sempre seria a suspeita número 1 de qualquer nojeira, meleca ou fedô.

Mas não teve jeito. Os temas escatológicos voltaram à minha agenda. Mais fortes do que nunca, porque agora, durante esse período chamado gravidez, a escatologia come solta e disso ninguém fala.

Quando se fala de gravidez as pessoas logo desenham um cenário de plenitude, alegria no lar, bochechas coradas, tigelas de cereal e uma barriga redonda carregando o bendito fruto.

Há, há, há. Essa barriga redonda contém muito mais do que um bebê lisinho e rosado. Ela carrega entranhas em transe. Esfíncteres afrouxados. Articulações amolecidas. Peidos para que te quero. A verdade escatológica escondida por trás da gravidez de algodão-doce é a seguinte:

Gases. Grávidas produzem mais peido. E isso ganha ares – hehe – trágicos com o próximo item.

Os esfíncteres afrouxam. Todos. Temos vários, lembra? Então além de produzir mais gases, a grávida peida sem querer, porque tá tudo meio beiçola e o peido escapa. Assim como o xixi. Acontece: grávida às vezes mija nas calças. Especialmente, por exemplo, num espirro. Você espirra, peida e mija, é uma explosão. Até acostumar e trançar as pernas bem apertadas ao menor sinal de espirro ou tosse.

Prisão de ventre. Seu intestino, velho conhecido, passa a funcionar do jeito que ele quer. E ele dá umas travadas. Quase metade das grávidas sofre de hemorróidas em algum momento da gravidez. Hemorróidas, mano. Não há nada menos pão-de-ló neste mundo do que hemorróidas.

Pois é, ninguém fala disso. Todo mundo sabe que grávida vomita. E é estranho que isso não seja visto como algo nojento, já que vômito é mais nojento que peido. Mas ninguém avisa dessas coisas. Nem que o períneo, foi por isso que lembrei dessa história da Flip lá no alto, vira assunto.

Eu tenho conversado muito sobre o períneo. Mas deixa pra depois, que esse texto já deu.

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PS: Lanço aqui então uma discreta campanha pela livre demanda, da qual eu já sou adepta há algum tempo e agora ainda mais: ao menor sinal do despontar de uma cagada, vou a qualquer banheiro, onde for, não importa, não ligo, pode olhar feio, tô nem aí. Qualquer coisa para não segurar, que a pior coisa na vida é ficar enfezado. E os banheiros estão aí pra isso. É só deixar tudo limpo como estava quando você entrou.

Tá gorda ou grávida?

Eu estava numa loja comprando xícaras quando aconteceu comigo pela primeira vez. Lá se vão anos e anos. Eu tinha acabado de mandar uma feijoada no Ugue’s e estava com um casaco com bolsos canguru, as mãos enfiadas no bolso.

A vendedora da loja perguntou, com uma cara bem feliz:

– Tem neném nessa barriga?

E eu respondi:

– Não, feijoada.

Ela embrulhou as xícaras, apontou o valor da compra na tela, passou o cartão e acabou.

Agora estou na situação oposta. Aos quase cinco meses de gravidez, já tenho barriga, mas ela é ambígua. Aconteceu hoje no salão de beleza. Cheguei, dei oi geral e fiquei sentada esperando a Jô e a Lud, as manicures com quem tinha marcado horário. (Breve parêntese: sou pouco dada a peruagens, mas se tem uma peruagem que eu adoro é fazer pé e mão ao mesmo tempo. Os motivos são vários e vão do mais porco elitismo – me sinto uma senhora feudal sendo embelezada por múltiplas manicures – ao mais belo camaradismo – a conversa fica mais animada em três pessoas do que duas.)

E a Jô, que é a manicure da turma, portanto já sabia, chegou-chegando: E o bebê, Helô? Foi um alívio no salão. A Laura, manicure-chefe, emendou: Eita, eu achei que você tinha dado uma engordada. A Neínha, irmã da Laura, também se manifestou: ufa, que bom!

Eu também acho bom. Acho ótimo que desta vez não é feijoada. Mas não vejo a hora de a barriga ganhar obviedade.

Dias desses, meus amados Rods e Albie estavam aqui em casa e o assunto veio à tona. O Rods, que está entre as pessoas mais retas que conheço, mandou:

– Olhando assim, ainda parece relaxo.

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Piercingless

Depois de onze anos ininterruptos, tirei o piercing do nariz pela primeira vez desde que ele foi colocado lá. O motivo: uma radiografia da cara.

Quando vi o aviso dizendo que piercings, brincos e correntes deveriam ser retirados para a radiografia panorâmica achei que era daqueles que ninguém obedece. Tipo no metrô: antes de entrar, espere os outros saírem. Ou no elevador: antes de entrar, verifique se o mesmo encontra-se ali mesmo.

Então perguntei pra mulher: sério que tem que tirar?
Ela me olhou com cara de ênfase: muito sério.

Fui ao banheiro e rapidamente tirei a argola da napa. Quando me vi sem piercing achei bem diferente. E fui tirar radiografia.

*

Ainda estou sem o piercing. E ninguém. Ninguém. Ninguém reparou. Nem meu irmão. Nem a Lu. Nem o Rafa. Com ele, foi assim:

– Você não notou nada diferente?
– Você fez limpeza nos dentes!, disse ele, porque sabia que eu tinha ido à dentista de manhã.
– Ahã, mas não é isso.
– Cortou o cabelo?
– Não.
– Mudou o cabelo?
– Não.
– Tirou a sombrancelha?
– Não.

Daí eu cocei o nariz. Só então ele percebeu.

*

Mas mudou alguma coisa. E eu não devolvi a argola ao nariz. E lá se vão meses. Ainda não sei exatamente o que mudou. Mas tenho alguns palpites.

– Minha cara parece que ficou inteira.
– Eu não virei outra pessoa só porque tirei o piercing. Eu sei que isso não parece fazer sentido. Mas faz.
– O que me faz crer que importa cada vez menos como eu pareço ou se eu pareço o que sou. O que leva à conclusão: estou, definitivamente, ficando velha. Jajá vou começar a achar que tudo bem sair por aí descabelada. Ah, não, isso eu já faço desde sempre. Será que daqui a pouco vou começar a pentear o cabelo? Não é possível. Ainda bem que guardei a argola bem guardada. Qualquer coisa corro lá e coloca ela de volta.

 

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Hoje vou ao Bar Balcão

Na minha separação, dois anos atrás, na divisão de bens, o Bar Balcão ficou com o meu ex. Foi a primeira coisa que decidimos. A conversa foi assim:

– É isso mesmo?
– É.
– Então é isso, né? É.
– É isso? É.
– Tá.
– Tá.
(breve silêncio)
– E quem vai ficar com o Balcão?

A discussão foi longa. Ele conhecia o bar primeiro. A primeira vez que fui lá, foi porque ele me levou. Mas, no caminho para o banheiro, tem um quadrinho com um texto meu para o Divirta-se falando sobre o hamburguer do Dudu (é verdade que eu tive a manha de errar o endereço, mas quando você vai sempre ao lugar, o endereço acaba perdendo relevância). E eu sou jornalista e todo mundo sabe que o Balcão é bar de jornalista. O que naturalmente deixaria o Balcão comigo.

Bem, como eu queria muito ficar com o sofá e com um quadro de luta-livre mexicana (ambos itens potencialmente polêmicos na hora de decidir o que era de quem), cedi o Balcão para garantir El Enmascarado de Plata.

Banida no Balcão, passei a frequentar o Bar da Dida (que eu já frequentava e sempre esteve na lista de bares favoritos). Eu achei bom mudar de ares, e os ares tinham definitivamente mudado. Embora não tenha nem mudado de quadra.

Mas como as regras são feitas para serem quebradas – e eu tenho meus informantes – quando o ex tá viajando ou dormindo (tenho a impressão de que a notivaguice ficou pra mim), volta e meia eu volto o Balcão. Já cheguei lá bem tarde, meia dúzia de gato-pingado, pra tomar dois bloody marys e falar mal do jantar afetado que nunca terminava num restaurante ali perto. E quando marco de encontrar amigos lá, amigos que sabem que fui banida do bar, adoro os primeiros momentos da conversa, em que faço uma cara de clandestina e digo: ‘eu não poderia estar aqui’.

Por obra do destino, a dona do Bar Balcão ficou sabendo dessa história e decretou:

– Ela pode vir aqui sim!

Bom, ela é a dona do estabelecimento, né. Então hoje, se o Bar Balcão abrir, eu faço questão de ir lá tomar um chope.

Quero manifestar meu carinho aos garçons, que ontem à noite foram agredidos no mais recente caso da onda de arrastões que parece querer dar o tiro na testa, aquele último, com indícios de execução, na vida paulistana.

Eu aceitei abrir mão do Balcão na divisão de bens. Mas me recuso – me recuso – a permitir que roubem o Balcão (e o Carlota, e a pizzaria Bráz etc etc e os resturantes e o bares e os bares que abrem às segundas-feiras e as pessoas que vão a bares na segunda-feira e essa coisa paulistana de se achar capital da gastronomia e da vida noturna mundial, que é um pouco jeca, mas tem uma graça toda própria) de mim e de todo mundo. Vamo?

PS. Ontem eu fui ao Dry, bar que não combina muito com meu estilão, e, na volta pra casa, passei na frente do Balcão. Era tipo meia-noite e pouco. E eu pensei: ai, a gente podia parar pra tomar uma saiderinha no Balcão. Mas era segunda-feira e o pessoal aqui em casa acorda cedo e tava aquela neblina toda sugerindo cama-cama-cama-cama. Um hora depois, cinco homens armados renderam um garçom do Balcão que estava fechando a casa, roubaram os poucos clientes que deviam estar insistindo naquela última rodada, e agrediram os garçons para roubar o caixa, de onde levaram R$ 200. Agrediram os garçons, mano. Os garçons do Balcão. Que são os garçons mais legais do mundo depois do Eugênio, o garçom do Prainha (de Higienópolis, não da Prainha da Paulista).

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O cobrador mágico

Olhando de fora, parece um ônibus de linha. Mas não é. É uma máquina de alegria. Funciona assim: você entra pela porta da frente cansado, desanimado, mal-humorado, tristonho, pensativo, o que for. E sai pela porta de trás feliz. Certo de que o Homem é bom. Certo de que vai dar tudo certo. De que estamos no caminho certo.

Esse ônibus especial faz a linha 719-P (Metrô Armênia-Pinheiros).

E o motor dessaa máquina de alegria responde pelo nome de Chicão. Olhando de fora, ele é cobrador. Mas isso é só disfarce. Eu não decidi ainda direito o que ele é na verdade. Preciso da ajuda de vocês. Vou me esforçar para descrever bem o Chicão.

(Mas antes de começar a falar do Chicão, um breve parêntese sobre mim mesma. Vejam como eu sou sortuda. Eu pego o ônibus do Chicão para voltar da terapia para casa. Da terapia, mano. Então quando digo que se você está tristonho, pensativo, desanimado o que for, o ônibus do Chicão te deixa feliz é porque SEI do que estou falando.)

Funciona assim. Você está na Teodoro Sampaio, aquele trânsito, aquela confusão. Aí entra no ônibus e ao passar na roleta ouve:

– Bom dia, minha linda.

Toma um susto, olha pra frente e dá de cara com um sorriso gigante, branco, num rosto bem preto, careca.

Daí mal dá tempo de responder e ele já está falando com a pessoa de trás:

– Oi, minha linda, tudo bom com você hoje? Mas você tá linda demais hoje, não quer namorar o negão, não?

Daí você olha pra trás e vê uma senhorinha meio rindo meio envergonhada, que estende a mão pro Chicão beijar.

E se entra um homem, não tem problema. É bom dia, meu lindo. Meu querido, minha linda, meu amor, gata. Nesse ônibus, todo mundo é lindo. Todo mundo sorri, dá risada. Todo mundo conversa. O Chicão vai comandando o papo e as descidas.

– Avenida Angélica, até número 2.600 é aqui. Prédio tal, laboratório sei lá qual, conjunto das quantas? Desce aqui.

E vai avisando parada a parada. Cadê a minha linda que queria descer no Lavoisier? É aqui, gata, pode descer. Xuxu, você ainda não, seu ponto é mais pra frente, confia no negão que eu não esqueço não.

Daqui a pouco aparece um jornalzinho Destak. Quem quer ler jornal? Tem dois aqui. Tó. As pessoas pegam o jornal pra ler e quando acabam passam pra outra pessoa que manifestou que também queria ler. E quando todo mundo termina de ler o jornal volta pro Chicão que pergunta de novo: Quem quer ler jornal? Táqui meu lindo, depois passa ali pra minha linda de vermelho que ela quer ler também. É transporte coletivo. (Toda vez que ando no ônibus do Chicão penso nisso. Isso sim é que é transporte coletivo. Todo mundo está junto ali dentro. É o contrário daquela chatice de gente obstruindo a porta, gente que não percebe o outro. Hoje mesmo parei pra olhar com atenção e ninguém, ninguém, estava com fone de ouvido. Todo mundo estava ouvindo o papo do Chicão.)

Aí entra uma mulher. E grita. AAAAAAH! Meu amor! Quanto tempo! Chicão, você é a pessoa mais linda do mundo! Eu amo você. E o Chicão quase chora. Ah, minha doida, não faz isso com o negão!

Fazia tempo que eu não via o Chicão. Tava até pensando em ligar pra SPTrans pra perguntar se ele tinha mudado de linha ou se aposentado (porque numa viagem, há algum tempo, eu lembro de ele ter dito que queria aposentar). Então quando entrei no ônibus e vi o Chicão quase que não acredito. Quando fui passar na roleta puxei papo:

– Tava sumido, Chicão!

E ele:

– É que eu tô ficando folgado. Só faço dias viagens agora. Tá na hora de aposentar, viu, minha linda. Trabalho há 39 anos. 16 nessa linha. Tem que parar antes de ficar chato.

Fiquei ali bem perto pra poder fazer umas perguntas pra ele. Mas antes que eu pudesse começar, ele emendou:

– Já comprei até meu filtro solar. Quero aposentar e ir pra praia, aprender a nadar, beijar na boca e transar na areia. Já imaginou que loucura?

A mulherada começou a chiar. Ah, não, Chicão. Você não pode aposentar. O que vai ser da gente? Perguntei o que faltava pra ele se aposentar. Idade. Chicão tem 53 anos.

Começou maior rasgação de seda pro Chicão. E ele foi me dizendo: Sabe, gata, a gente vai criando amizade. Vê aqui: essa aqui, minha loira, eu amo ela. E essa outra (se estica inteiro pra pegar a mão de uma passageira), é meu amor. Eu amo você, minha linda. Aquele ali (aponta um senhor sentado, que olha pra ele sorrindo) é meu amigão. Eu fico amigo dos meus clientes. E vai ficando difícil.

É muito amor nesse ônibus.

Todo mundo entra na dele. Chicão, se você parar, todo mundo vai chorar de tristeza. O Chicão vai se emocionando.

– Ai, assim eu vou chorar. Vocês, viu… eu preciso aposentar. Se não vou virar um chato. Vocês vão fazer o negão chorar desse jeito. (Silêncio) Não, eu não vou chorar.

Então ele começa a contar a história do Meu Pai. Um cobrador de uma linha que não me lembro mais qual é e que está na mesma linha há trinta e sei lá quantos anos.

– O Meu Pai foi fazendo amizade com os clientes da linha, todo mundo conhece ele. Só que os clientes do Meu Pai foram morrendo. Morreram todos os amigos dele da linha. E hoje ele é um chato.

Cá com meu egoísmo, eu torço pro Chicão virar um chato e se aposentar só depois da hora da nossa morte. Amém.

PS. Hoje os ônibus estavam em média 1h30min atrasados por problemas no trânsito. O 719-P estava abarrotado. Fazia muito tempo que os passageiros estavam esperando o ônibus. Todo mundo entrava bufando, atrasado. Uma mulher reclamou com o Chicão. Faz uma hora que estou no ponto esperando! E o Chicão: não briga comigo, minha linda, tá tudo parado. Era pra gente já estar na Armênia a essa hora. Eu não vou ao banheiro desde as 6h30 da manhã. Se desse para dar um nozinho na ponta pra eu não fazer xixi na calça, juro que eu dava. E a mulher, que tava toda emburrada, riu, pediu desculpas e emendou – É só um desabafo.

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A revolução da salsinha

(A troca de correspondências continua. Hoje eu respondo a carta da Belle)

De Heloisa Lupinacci, São Paulo
Para Isabelle Moreira Lima, Chicago

Minha vontade é que mude tudo! Mudança é das minhas coisas favoritas. Gosto até de mudar de casa. Encaixota, fitacrepa, etiqueta. Carrega. Desencaixota, desetiqueta. E tudo que era meio velho fica meio novo. Aqueles móveis cansados ficam atordoados. A cômoda incomodada. É como aqueles suvenires de lugar com neve, que você chacoalha e a neve sobe toda e fica flutuando. Acho lindo.

Mas eu não quero mudar de casa que estou bem aqui. Queria, sim, que você mudasse, de volta aqui pra sua casa do lado da minha. Isso sim! Mas beleza, esse período em Chicago vai ser bom pra você, vai ser bom pro Chico, e, por consequência, pra mim, que estou certa de que você vai ficar muito amiga do Rahm Emanuel. Daí ele vem te visitar e você me chama pra tomar umas no baiano com ele. Aliás, faz isso com o Achatz também? (Aliás aliás, esse perfil que você fez para o Comida hoje parece amuse bouche: dá vontade de muito mais. Aposto que você deve estar aí se contorcendo com a dor de ser jornalista e escrever um texto enorme que precisou se encaixar num espaço que não era nem a metade do tamanho… eu passei por isso recentemente, fazia tempo que não acontecia. Adoro, com cada veia e artéria, o jornal impresso, dedo manchado, braço aberto pra virar a página. Mas bem que podia ter um ‘carregar mais parágrafos’ clicável no fim de cada retranca. Aliás aliás aliás, estou bem digressiva, esses dias ouvi uma história incrível. Vou contar e já volto pras mudanças)

Eu estava conversando com um mineiro das baixelas e ele me contou que na casa dele, todas as manhãs, o jornal era passado. Na tábua de passar roupa, com ferro quente. “Sem vapor, claro”. Havia um ferro específico para o jornal. A empregada abria a edição em cima da tábua e passava página por página. Disse ele que, com isso, o jornal não solta tinta e os dedos continuam limpos depois da leitura. Eu estou para experimentar. Deve ficar lindo o jornal todo lisinho.

Então voltando à mudança. Eu queria muitas. Mas queria muito uma:

Eu queria que todo mundo prestasse atenção ao que come. Que quando as pessoas abrissem o pote de iogurte de manhã, se perguntassem como ele foi feito. Como o leite virou iogurte. Como o leite saiu da teta da vaca? Como vive a vaca?

Comer está na moda, todo mundo vai aos restaurantes do momento, todo mundo sabe de vinhos tais e quetais. Mas e o pão nosso de cada dia?

Num segundo momento, queria que todo mundo de repente pegasse pra si alguns desses processos. Pão? Mistura a farinha com água, coloca o fermento, escolhe suas castanhas favoritas, vê o bichinho crescer, assar, dourar, queimar. Aprende o pão. É o iogurte? Descola um fermento e bastam 10 minutos por dia para ter iogurte fresquinho feito em casa diariamente. E aí você escolhe qual leite usar. E vê como tudo muda se o dia tá quente, se tá frio, se o leite é bom, se o leite é médio. E que se você coar, vira coalhada. Se coar muito e apertar, vira queijinho.

Aí, viria a revolução: todas as pessoas iam querer cultivar suas próprias cebolas, seu próprios chuchus. E iam arrumar cantinhos pela cidade para fazer hortas. No topo do prédio, no canto da varanda, no canteiro do condomínio. No teto da loja da frente, que fica ali só refletindo o calor do sol. E a cidade seria tomada por hortas. E se a minha horta desse muita beterraba e a sua estiver bombando de couve, a gente troca! Eu dou umas beterrabas pra você, que me dá uns pés de couve. E a gente se conhece e conhece aquele outro vizinho que deu de cobrir a fachada do prédio com lindos pés de maracujá!

Ok, talvez minha utopia roceira não aconteça e São Paulo não se transforme numa enorme fazenda… Mas essa minha sugestão é só um meio para um fim, para a mudança que eu quero e venho tentando fazer na minha vida: parar de consumir sem pensar. E não estou falando de bolsa cara, sapato de grife.

Estou falando de você ir ao supermercado e ter: frango.

Como assim frango? Queria que o consumidor do meu bairro, da minha cidade e, no limite, do Brasil, ficasse cricri e se perguntasse: como assim frango? Eu quero frango criado livre, quero frango caipira. Galinho carijó, galinha d’Angola. Pato, ganso, codorna.

É isso. E você tava achando que tava hippie demais porque queria um pouco mais de paz…

Beijo, que agora eu vou lá vestir meu poncho e tocar flauta de pan.

 

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Por que eu adoro morar na Santa Cecília

Porque depois de rodar diversas lojas de jardinagem, dessas enormes, e de chafurdar na internet, atrás de floreiras de 20 cm x 10 cm que não fossem pretas mas sim coloridas, eu passei na floricultura da Terezinha e em dois dias ela me ligou pra eu ir lá buscar um arco-íris de floreiras, na medida certa.

Aí o cartão não passou, porque a máquina de Visa dela tava com problema. E ela: passa aqui depois e paga.

Porque depois de rodar diversas lojas de jardinagem e de chafurdar na internet atrás de cactos bonitos, pequenos mas bem espinhentos (jajá explico porque), lembrei da lojinha de R$ 1 do largo Sta Cecília em que, sabe Deus porque motivo, sempre há pelo menos uma estante com as suculentas mais suculentas e os cactos mais cactáceos que eu já vi. A R$ 2, cada.

Porque no caminho pra casa, com uma caixa cheia de cactos na mão, eu vi um senhor saído de um filme italiano sentado no boteco nordestino comendo uma mocofava. Boina, óculos escuro, cabelo branco, suéter listrado. Se minhas mãos não estivessem ocupadas, teria tirado uma foto.

E bem quando eu pensava em tirar a foto, olhei pra frente e vi um cara vestido de Chaves. Do Chaves da infância. Com o chapéu cobrindo a orelha, a camiseta listrada e a bermuda, o suspensório torto e tudo. Ele parou na calçada e fez a pose do Chaves, aquela de quando ele trava. E lá ficou.

Eu subi a rua rindo, mano, que bairro divertido. E parei pra comprar saco de lixo na bomboniére. Ah, sim.

Porque na Santa Cecília a gente vai na bomboniére comprar saco de lixo.

E, como eu disse, eu tava carregando uma caixa de cactos, as duas mãos ocupadas. O moço já veio rindo, dá aqui a caixa, moça, eu vou guardar aqui no escritório. Peguei o saco de lixo e fui pagar.

– Oi, se o tamanho do saco de lixo estiver errado, posso trocar? Eu nunca sei se é 60 litros, 100 litros, 30 litros…

E o cara:

– Hm, poderia, mas só se a embalagem não estiver aberta.

Ficamos os dois pensando… Com a embalagem fechada eu não tenho como saber se o saco de lixo é do tamanho certo. Se abrir a embalagem e descobrir que está errado não posso trocar. Então a resposta é…

– Ah, quer saber? Abre o saco com cuidado, vê se é o tamanho certo, se não for, coloca direitinho na embalagem e vem aqui que eu troco.

Paguei e logo já apareceu o moço com minha caixa cactácea.

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