Olhando de fora, parece um ônibus de linha. Mas não é. É uma máquina de alegria. Funciona assim: você entra pela porta da frente cansado, desanimado, mal-humorado, tristonho, pensativo, o que for. E sai pela porta de trás feliz. Certo de que o Homem é bom. Certo de que vai dar tudo certo. De que estamos no caminho certo.
Esse ônibus especial faz a linha 719-P (Metrô Armênia-Pinheiros).
E o motor dessaa máquina de alegria responde pelo nome de Chicão. Olhando de fora, ele é cobrador. Mas isso é só disfarce. Eu não decidi ainda direito o que ele é na verdade. Preciso da ajuda de vocês. Vou me esforçar para descrever bem o Chicão.
(Mas antes de começar a falar do Chicão, um breve parêntese sobre mim mesma. Vejam como eu sou sortuda. Eu pego o ônibus do Chicão para voltar da terapia para casa. Da terapia, mano. Então quando digo que se você está tristonho, pensativo, desanimado o que for, o ônibus do Chicão te deixa feliz é porque SEI do que estou falando.)
Funciona assim. Você está na Teodoro Sampaio, aquele trânsito, aquela confusão. Aí entra no ônibus e ao passar na roleta ouve:
– Bom dia, minha linda.
Toma um susto, olha pra frente e dá de cara com um sorriso gigante, branco, num rosto bem preto, careca.
Daí mal dá tempo de responder e ele já está falando com a pessoa de trás:
– Oi, minha linda, tudo bom com você hoje? Mas você tá linda demais hoje, não quer namorar o negão, não?
Daí você olha pra trás e vê uma senhorinha meio rindo meio envergonhada, que estende a mão pro Chicão beijar.
E se entra um homem, não tem problema. É bom dia, meu lindo. Meu querido, minha linda, meu amor, gata. Nesse ônibus, todo mundo é lindo. Todo mundo sorri, dá risada. Todo mundo conversa. O Chicão vai comandando o papo e as descidas.
– Avenida Angélica, até número 2.600 é aqui. Prédio tal, laboratório sei lá qual, conjunto das quantas? Desce aqui.
E vai avisando parada a parada. Cadê a minha linda que queria descer no Lavoisier? É aqui, gata, pode descer. Xuxu, você ainda não, seu ponto é mais pra frente, confia no negão que eu não esqueço não.
Daqui a pouco aparece um jornalzinho Destak. Quem quer ler jornal? Tem dois aqui. Tó. As pessoas pegam o jornal pra ler e quando acabam passam pra outra pessoa que manifestou que também queria ler. E quando todo mundo termina de ler o jornal volta pro Chicão que pergunta de novo: Quem quer ler jornal? Táqui meu lindo, depois passa ali pra minha linda de vermelho que ela quer ler também. É transporte coletivo. (Toda vez que ando no ônibus do Chicão penso nisso. Isso sim é que é transporte coletivo. Todo mundo está junto ali dentro. É o contrário daquela chatice de gente obstruindo a porta, gente que não percebe o outro. Hoje mesmo parei pra olhar com atenção e ninguém, ninguém, estava com fone de ouvido. Todo mundo estava ouvindo o papo do Chicão.)
Aí entra uma mulher. E grita. AAAAAAH! Meu amor! Quanto tempo! Chicão, você é a pessoa mais linda do mundo! Eu amo você. E o Chicão quase chora. Ah, minha doida, não faz isso com o negão!
Fazia tempo que eu não via o Chicão. Tava até pensando em ligar pra SPTrans pra perguntar se ele tinha mudado de linha ou se aposentado (porque numa viagem, há algum tempo, eu lembro de ele ter dito que queria aposentar). Então quando entrei no ônibus e vi o Chicão quase que não acredito. Quando fui passar na roleta puxei papo:
– Tava sumido, Chicão!
E ele:
– É que eu tô ficando folgado. Só faço dias viagens agora. Tá na hora de aposentar, viu, minha linda. Trabalho há 39 anos. 16 nessa linha. Tem que parar antes de ficar chato.
Fiquei ali bem perto pra poder fazer umas perguntas pra ele. Mas antes que eu pudesse começar, ele emendou:
– Já comprei até meu filtro solar. Quero aposentar e ir pra praia, aprender a nadar, beijar na boca e transar na areia. Já imaginou que loucura?
A mulherada começou a chiar. Ah, não, Chicão. Você não pode aposentar. O que vai ser da gente? Perguntei o que faltava pra ele se aposentar. Idade. Chicão tem 53 anos.
Começou maior rasgação de seda pro Chicão. E ele foi me dizendo: Sabe, gata, a gente vai criando amizade. Vê aqui: essa aqui, minha loira, eu amo ela. E essa outra (se estica inteiro pra pegar a mão de uma passageira), é meu amor. Eu amo você, minha linda. Aquele ali (aponta um senhor sentado, que olha pra ele sorrindo) é meu amigão. Eu fico amigo dos meus clientes. E vai ficando difícil.
É muito amor nesse ônibus.
Todo mundo entra na dele. Chicão, se você parar, todo mundo vai chorar de tristeza. O Chicão vai se emocionando.
– Ai, assim eu vou chorar. Vocês, viu… eu preciso aposentar. Se não vou virar um chato. Vocês vão fazer o negão chorar desse jeito. (Silêncio) Não, eu não vou chorar.
Então ele começa a contar a história do Meu Pai. Um cobrador de uma linha que não me lembro mais qual é e que está na mesma linha há trinta e sei lá quantos anos.
– O Meu Pai foi fazendo amizade com os clientes da linha, todo mundo conhece ele. Só que os clientes do Meu Pai foram morrendo. Morreram todos os amigos dele da linha. E hoje ele é um chato.
Cá com meu egoísmo, eu torço pro Chicão virar um chato e se aposentar só depois da hora da nossa morte. Amém.
PS. Hoje os ônibus estavam em média 1h30min atrasados por problemas no trânsito. O 719-P estava abarrotado. Fazia muito tempo que os passageiros estavam esperando o ônibus. Todo mundo entrava bufando, atrasado. Uma mulher reclamou com o Chicão. Faz uma hora que estou no ponto esperando! E o Chicão: não briga comigo, minha linda, tá tudo parado. Era pra gente já estar na Armênia a essa hora. Eu não vou ao banheiro desde as 6h30 da manhã. Se desse para dar um nozinho na ponta pra eu não fazer xixi na calça, juro que eu dava. E a mulher, que tava toda emburrada, riu, pediu desculpas e emendou – É só um desabafo.
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