Tira a gola rolê
e dá de cara
com o decote-vê.
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Tira a gola rolê
e dá de cara
com o decote-vê.
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A Ana, minha amiga, lançou uma pergunta ao vento (mentira, foi no Facebook): qual foi a experiência de viagem bate-volta mais louca que você viveu. Apesar de ser pra todo mundo e há semanas, resolvi responder.
Ana, tirando o fim de semana que passei em Guadalajara só para namorar (o cara mora nos EUA, eu no Brasil, onde a gente se encontra? Depende. Mas um ano atrás foi em um fim de semana chuvoso na cidade mexicana mais estranha que já visitei — conheço dez cidades no México. Não é pouca coisa), o bate-volta mais louco que fiz foi pra Baltimore.
Estava em Washington para escrever uma matéria sobre a Obamania. Obama tinha acabado de vencer a eleição que fez dele o primeiro presidente americano negro. Eram outros tempos.
Meu namorado da época foi comigo e ele queria ir a MICA, Maryland Institute College of Art, pra ver uma mulher fodona do design. Lá fomos nós de trem para Baltimore, onde ficava MICA, daqui pra frente tratada como a universidade.
Breve parêntese
Baltimore dá play em duas músicas no meu shuffle mental: o hino norte-americano, que foi criado lá, por um cara que tava num barco olhando pra bandeira depois de uma importante batalha da independência (1812, batalha de Baltimore, leia mais aqui no site do Smithsonian Museum), e Baltimore, country dos bons na voz do melhor de todos os tempos, Gram Parsons (curiosamente trilha sonora mental do fim do meu namoro com onamorado que estava comigo lá. Não a música Baltimore, mas o disco The Return of The Grevious Angel, com a Emilou Harrys, que disco! Presente do querido Fred Leal).
Dá play em Baltimore pra entrar no clima.
Chegando na universidade, o cara achou a sala, encontrou a fodona do design, se ajeitou e deu aquele adeus, se vira, vai lá fazer alguma coisa, até breve.
Eu já tinha um plano, claro. Eu sempre tenho um plano (cada um com sua nóia, a minha é sempre ter um plano na manga). Baltimore era conhecida por seus excelentes crab cakes com coleslaw. Naquela época, a gente usava o Zagat pra saber onde comer, qual era o melhor lugar, essas coisas. E o melhor crab cake segundo o Zagat era o do Fadley, no Lexington Market. Hoje, se você digita Baltimore crab cake market, o Tripadvisor diz: Os melhores – mas mais assustadores – crab cakes de Baltimore, sobre os crab cakes do Lexington Market. (Não clique agora, pra não ter spoiler. Mas depois, se duvidar de mim, pode clicar e vai ver que não foi viagem da minha cabeça.)
Naquela época não havia tanto medo (olha que frase ampla e cheia de sentido). E no Zagat só se falava sobre comida. Então sabendo apenas que aqueles eram supostamente os melhores crab cakes com coleslaw de Baltimore, decidi que a única coisa a ser feita em Baltimore era andar até Lexington Market pra comer crab cakes com coleslaw.
Outro breve parêntese
Tenho loucura por comida que não conheço. E tendo a me satisfazer com o nome, sem muita investigação, pra não estragar o primeiro encontro. É igual paquera nesses tempos de redes sociais – já vem muita informação de bandeja, tudo ali no about. Eu vejo muita graça na primeira conversa, no momento em que o cara conta, por exemplo, o que faz da vida. Quanto tempo demora pra chegar nesse assunto, como ele apresenta o assunto e nunca vou me esquecer do momento em que meu atual namorado contou que é arqueólogo, do tipo que escava, como se nada fosse. Enfim. Eu não tinha ideia do que era crab cake (sabia que teria carne de caranguejo, mas só). Muito menos que coleslaw era uma saladinha besta de repolho com cenoura. Se soubesse, talvez essa história não estivesse aqui para ser contada, talvez tivesse ficado na biblioteca do campus da universidade lendo o livro que tinha comprado sobre como identificar as folhas das árvores norte-americanas (que aliás é incrível e está em excelentes mãos, com a Ligia, em Chicago).
Bom, saí do campus, abri o mapa, vi onde era o mercado e decidi que o jeito mais fácil de chegar era seguir um trilho de trem ou bonde, não lembro. Eu sabia que a margem de trilhos tendem a ser áreas degradadas e sabia que Baltimore era uma cidade violenta, mas dei uma olhada ao redor e achei que tava tudo bem.
Guardei o mapa, comecei a caminhada e acendi um cigarro (naquela época eu era fumante). Em meia tragada, estava cercada de gente pedindo cigarro. Sempre tive como regra número 1 que cigarro não se nega. Meu maço inteiro se foi ali mesmo, antes de dar tempo de soltar a fumaça. Sem problemas, a regra número 2 era sempre carregar um maço reserva.
Lá fui eu, andando pelas streets of Baltimore, achando tudo bem peculiar. Marcas de antigos cartazes nas paredes, sombras de antigos letreiros nos muros, rabiscos de antigas fachadas comerciais. Nada novo, nada presente, só um ou outro passante com cara de siderado.
Lá pelas tantas, vinha vindo um garoto na direção oposta. Ele parecia apavorado e surpreso ao mesmo tempo. Assim que cruzou comigo, me parou, colocou as mãos nos meus ombros e disse:
– O que você está fazendo aqui?
Na hora fiquei confusa. Pensei: te conheço? De verdade que parecia a atitude de um conhecido. Respondi:
– Estou indo pro mercado comer crab cakes, e você?
Ele ficou estupefato, me largou e foi embora apressado.
Foi só uma quadra depois que me deu um estalo e eu me liguei no que estava acontecendo. Eu estava muito fora de lugar. E estava cercada de pessoas bem estranhas. Ainda faltava um chão para chegar ao mercado. E não era mais o caso de voltar.
Fiz cara de malandra, apertei o passo, botei as mãos no bolso e parei de achar poesia nas fachadas destruídas ao meu redor.
Foi uma caminhada nervosa, eu pensando o tempo inteiro no meu mantra de viajante intrépida: “não saí de São Paulo para ser assaltada em (nome de qualquer cidade aqui)”.
Quando cheguei ao mercado, estava sendo descaradamente seguida. Assim que entrei, os caras caíram fora e o segurança do mercado veio reto na minha direção.
– É sério que você veio caminhando?
– Sério, bicho. Sérião. Onde fica a barraca de crab cake?
Ele mostrou, fui lá, vi o crab cake com coleslaw, achei tudo com uma cara ótima e decidi que o meu namorado ia curtir o bolinho com salada. Então não comi, voltei para a universidade para pegar o gatinho e levá-lo até o mercado.
Claro que voltei a pé. Agora que sabia que a área era da pesada, estava ligeira e sabia como me virar. Cheguei lá, encontrei o cara e retomei o meu trajeto sentido mercado, dessa vez por outra rota, longe do trilho, num bairro claramente mais tranquilo (hoje pensando deve ser tipo a diferença de andar debaixo do Minhocão ou na Alameda Barros, em Santa Cecília).
Enquanto caminhávamos, ele foi contando dos projetos que tinham sido apresentados na aula que ele assistiu. O mais legal era sobre os arredores do hospital universi…
– Tário!! Vamos passar em frente jajá, é no caminho pro mercado!
– … A área mais violenta de Baltimore e provavelmente da costa leste dos Estados Unidos. O que? Vamos passar lá?
– Aham, é na próxima quadra!
– Helo, eu tô com meu computador aqui! (Ele era meio assustado. Muito gente boa, brilhante, mas um pouco assustado.)
Continuamos a caminhada, de novo entramos no mercado sob muitos olhares, de novo o segurança veio falar comigo.
– Sério que vocês vieram caminhando? Garota, qual seu problema?
Comemos o crab cake. Não era nada demais. Nem lembro, na real. Esquecível. Já o coleslaw eu amei. Dez a zero comparado com a salada de repolho cru mal temperada que eu comia na infância (com todo respeito, mãe, mas tempero de salada nunca foi o forte lá em casa).
De lá apanhamos um táxi para a estação de trem, para voltar a Washington. Quando a gente chegou na estação, tinha uma revoada de passarinhos, tipo andorinha, uma ave bem pequena. O Dani sacou o celular, filmou os passarinhos fazendo aquelas manchas bonitas no céu e aquela ficou sendo a imagem, bucólica, da passagem dele por Baltimore.
Eu não tirei foto, sempre esqueço de tirar. Mas a minha memória dessa day-trip fica entre ter quase 20 cigarros levados de minha mão em segundos (muito gentilmente, thank you sista, god bless you, etc) e o menino bonitinho me chacoalhando pelos ombros perguntando o que estava fazendo ali. Os espaços de antigos cartazes também foram marcantes. E o coleslaw entrou na minha vida.
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PS. Quem clicou no link do TripAdvisor pode ter notado que trata-se de uma avaliação de 2009, um ano depois de minha visita a Baltimore. Basta ler o comentário pra ver que não exagerei, o lugar era perigoso mesmo. Talvez hoje tenha mudado, gentrificação, pá (entrei no Google Street View pra matar a saudade e achei que tá meio diferente).
PS2: As imagens do post são do Google Images, busquei o nome da rua, o nome do mercado. Estava cansada e esqueci de pegar os créditos. Se forem suas, me conta? The images in this post are from Google Images, i searched the name of the street and of the market to find them. I was tired and forgot to get the credits. If they belong to you, let me know and i’ll be happy to give the credits and link to your profile.
Minha vó Edmea tinha voz melosa. E sempre tinha por perto algum adulto virando o olho. E ela falava umas coisas engraçadas. Lembro uma vez, na minha casa, ela desembrulhando uma bala de doce de leite dessas que vêm na palha de milho e falou:
Palha de milho é uma coisa tão romântica… (ela sempre punha reticências nas frases, e olhava pro horizonte). Não tem comparação, plástico, palha de milho.
Adultos virando o olho.
Ela via graça numas coisas improváveis. E se dedicava muito a isso. Por muitos anos, acordava antes do sol nascer em seu apartamento em Itanhaém (naquele prédio que parece um rolo de papel higiênico na Praia do Sonho) e tirava foto do sol nascendo. Com a data/hora da câmera fotográfica ativada. Era sempre o mesmo ângulo, sempre o mesmo horário. E depois ela mostrava pra gente 568 fotos do mesmo sol nascendo nas mesmas pedras e ficava empolgada com a diferença de uma pra outra. O sol nascendo mais pra lá no inverno, mais pra cá no verão, mais tarde no inverno, mais cedo no verão, mais vermelho no inverno, mais amarelo no verão.
Daí de vez em quando ela mandava um pacotinho de fotos do sol nascendo pelo Correio com recados incríveis escritos nos versos das fotos.
Devo ser maluca, só eu para achar graça de ver o sol nascer todos os dias. Mas não é incrível como uma coisa que acontece todos os dias é totalmente diferente a cada dia que passa?
É incrível, vó.
As fotos da minha vó eram um caso à parte. Depois que meu vô morreu, ela calçou rodinhas e foi girar o mundo. Viajou para todos os lados. E a cada viagem, voltava com zilhares de fotos, colocava em álbuns e escrevia legendas hiper detalhadas e poéticas.
Daí ela chamava a gente pra ir na casa dela ver as fotos e era um programa longuíssimo, porque tinha que olhar uma por uma e ler as legendas.
Adultos virando o olho.
Lembro muito do álbum de Veneza. Tinha umas quatro páginas de fotos dela alimentando os mesmos passarinhos, uns pombos. E as legendas eram assim.
“Um momento muito feliz”
“Agora imagina, um momento mais feliz ainda”
“Eu nunca poderia imaginar que teria um momento tão feliz como esse, os pássaros em Veneza”
E assim ia, e se ela lembrasse de qualquer outra coisa, anotava ali mesmo na legenda da viagem, e a gente ver aqueles álbuns era viajar pra dentro da cabeça engraçada dela.
Mas ela não era só um docinho. Era brava, não tinha papas na língua e xingava feio – depois dava uma risada aguda, com a mão na frente da boca. Meio Zacarias.
A mão dela sempre tinha a unha feita, com o formato bem oval, meio pontudo, pintado de rosa, daquele rosa cintilante que parece casca de concha. Quando eu era pequena eu achava que a unha da minha vó era de concha do mar.
É que eu sempre achei ela muito bonita. Ela tinha o olho bem azul e a bochecha com aquele risco de quem tem a maçã rosto bem alta. A boca era fina, bem fina. A pele dela, então, era mais fina ainda e você conseguia ver umas veiazinhas bem fininhas nas bochechas, na testa, no queixo.
Ela decidiu que era alemã – era filha de pai e mãe brasileiros, com avôs brasileiros de um lado e franco-alemães do outro. E como cozinhava bem!
Era compota de laranja, geleia de jabuticaba, rocambole, bolinhos vienenses (meus favoritos de infância, um pão de ló assado em forminha de empada recheado de doce de leite e salpicado com açúcar de confeiteiro) e uns bolos de frutas secas tipo strudel horrorosos que eu nunca gostei porque não gostava de frutas secas.
E tinha um bolo que minha nossa senhora, era um bolo simples, com café, e em cima dele ia uma cobertura crespinha de café com manteiga que eu não tenho nenhuma dúvida que é das coisas mais maravilhosas que eu já comi na vida. Nunca mais vou comer. Nem quero que tentem fazer de novo. Mesmo que façam igual. Essa lembrança não deixo tirarem de perto dela. Junto com a xícara de café com leite cheio de nata. Ela adorava quando o leite formava nata. Eu tinha nojo na época. Hoje amo todas as expressões da gordura do leite. Deve correr no sangue, coisa de DNA.
Foi na casa dela que eu aprendi a abrir nozes na quina da porta (apenas uma palavra: camafeu. Camafeu, velho. Não tem nada no mundo melhor que camafeu. Tem: camafeu que sua vó fez.). Foi na casa dela que aprendi a colocar disco para tocar na vitrola. Foi na casa dela que aprendi a ler gibi – ela tinha um armário lotado de gibis. Lotado. Foi na casa dela que aprendi a dar tiro de espingarda de chumbinho. Foi na casa dela que vi como fazia massa caseira (apesar de a vó italiana ser do outro lado, era a Edmea que tinha máquina de fazer macarrão, que sempre passava do ponto de cozimento, óbvio, mas foda-se).
Na casa dela tinha um relógio-porta-canetas azul da boêmia que tocava Pour Elise. Eu amava e odiava aquele porta-canetas. Ele era a coisa mais brega e maravilhosa que eu já vi na minha vida. Mesmo pequena, mesmo sem nenhum senso de estilo (mentira, eu já tinha, mas quero soar modesta), eu olhava praquele relógio-porta-caneta e sentia profundo amor e profundo ódio. Porque era o azul mais bonito do mundo. Mas o objeto mais abjeto que se pode imaginar. Tutututututututuuuuuu tutututuuuuuu tutututuuuuuuu-tututututututututuuuuuu tutututuuuuuu tutututuuuuuu. Era o tempo (relógio), a escrita (a caneta), a música (pour elise) e as cores (o azul era de fato impressionante) aprisionados num objeto que nunca teve nenhuma serventia (ninguém via as horas ali, ninguém usava aquela caneta, ninguém gostava da musiquinha e ninguém notava que azul bonito era aquele). Só servia pra gente tomar bronca dos adultos quando tocava a música mil vezes e eles não aguentavam mais.
Põe essa caneta no lugar, pelo amor de Deus.
Alguém sempre gritava da sala. Porque era só tirar a caneta do porta-caneta pro bichinho começar a cantar.
Na caixa de joias dela aprendi a diferença entre joia, bijuteria e extravagância de plástico. Aprendi o que é laqueado e o que é baquelite. E aprendi que pra saber mais coisa tem que falar mais língua.
Na casa dela a gente tomava café com licor.
Algumas das roupas mais bonitas que eu uso eram da minha vó. Hoje mesmo, para o funeral dela, vou com uma saia preta de lã com duas pregas na frente que sempre sempre sempre que uso alguém elogia (escrevi esse pedaço no dia exato em que ela morreu). A saia deve ter uns 50 anos, sem brincadeira. Eu uso há uns bons 15 anos. E sempre recebo elogio. Assim como sempre que vou a um casamento com a saia longa azul marinho de pregas que era dela, ouço elogios à elegância da peça.
Ou quando fui prum casamento em Oxford (cóf) e coloquei um vestido de seda incrível que era dela e todo mundo babou. Ou quando coloco o vestido meio Pucci anos 1960 todo mundo pergunta. Esse, aliás, só me serve quando eu tô bem magrinha.
A vó Edmea era muito elegante, corpo de ampulheta, ganhou concurso de miss e tudo. Era uma velha bonita, mesmo na UTI, sem a dentadura, sem a unha rosa-concha, sem conseguir falar, sem conseguir acreditar na bosta da situação, abria aquele olhão de água e sorria com a maçã do rosto deixando claro que a beleza não vai embora, só muda de lugar.
Quando ela caiu – e toda essa chatice de velhice começou a pegar pesado – a informação chegou pra mim meio atrapalhada. A minha família desse lado não é muito boa de passar notícia. Ninguém sabia nada direito e tinha só um rumor de que a vó tinha caído e ido pro hospital com o tio Zezinho – ou Julinho, se lá. Sendo eu a única jornalista dos dois lados, de pai e de mãe, saí fazendo meu trabalho. Lista de hospitais de Campinas, em ordem alfabética, vamo que vamo. Liguei aqui, liguei lá, pedi pra transferir pro quarto, quem atende? Ela mesma.
Alô.
Vó? É a Helô (já falei chorando, porque, né, falou que velho caiu em casa sozinho eu já enterrei). O que aconteceu? Tá tudo bem?
Ela respondeu brava, com um tom de voz que era muito dela, entre o resmungo e a bronca.
Ah, olha, uma patetada. Fui virar da cama, caí no chão, que nem saco de batata. É um saco ficar velha, agora vou ter que operar, botar placa, precisa aprovação do convênio. (Aqui ela voltou a falar com a voz melosa de sempre:) Ai, minha netinha, uma chateação. (Risada aguda)
Era um barato como ela fazia isso, falava as groselhas que bem queria e para deixar claro que sabia bem o que tinha feito, dava uma risada aguda, com a mão na frente da boca. Tipo Zacarias.
O plano aprovou, operou, botou placa, voltou pra casa. Em uma semana, AVC. Depois de um ano, morreu.
Minha sorte, além de toda a sorte de ter sido neta dela, é que um dia, dez anos atrás, no casamento do meu irmão, chamei minha vó no canto e contei tudo pra ela. Respirei fundo, agradeci ao vinho pela tagalerice e expliquei tintim por tintim como ela era parte de quem eu sou. Ou melhor, como ela era parte de quem eu escolhi ser.
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Prólogo
A última vez que contei alguma história aqui – lá se vão quase três meses – foi uma história bonita, mas meio superficial, embora, claro, eu tenha tentado extrair dela o suprassumo do que o momento pedia.
Se eu soubesse que hoje estaria lendo sobre o fechamento das fronteiras norte-americanas para cidadãos de sete países de maioria muçulmana, teria logo chutado a canela daquela véia louca e dado início à barbárie só para ser avant garde. Mentira, jamais faria isso. Mas eu tava otimista naquele dia. Hoje não dá pra estar.
Porém. However (Ráu-éver, eu tô aprendendo inglês, me deixa). Véi, porém… aconteceu tanta coisa de lá pra cá, que se eu pudesse escrever do jeito que Splash, Uma Sereia em Minha Vida faz pra ler, eu mandava ver e todo mundo que ainda insiste em acompanhar esse blog (<3 amo vcs) ficaria com os olhos marejadinhos comigo. (Pra quem não tem a referência, a Splash Uma Sereia Em Minha Vida coloca o braço no meio do livro e lê tudo de uma vez só.)
Vamos ao que interessa
Vou contar só uma, em nome da história desse Caracteres, sempre tão dedicado à escatologia, aos encantamentos e ao amor.
Vamos chamar os personagens de a mina (claro que sou eu) e o cara (óbvio, meu namorado). Contexto: o namoro tem 8 meses, mas somando todo o tempo que passamos juntos dá 25 dias. Menos de um mês. Namoro à distância, cada um num canto do mundo, deu pra sacar, né, blz.
A mina e o cara vão ficar juntos por uma semana. Ela foi pra casa dele, numa cidade remota no inverno setentrional. No segundo dia, eles decidem caminhar au bord de la riviére, ir a um dive bar e encher a cara. Na volta pra casa, bem bêbados, ela peida. Inverno setentrional. "Ela peida" o caralho…, peidei. O peido fica preso no casaco, e sai meio pelo pescoço e o cara exclama:
– Que fedô!
– Deve ser o rio (malandra, repertório Tietê)
– Estranho, o rio nunca fedeu (sim, estamos a mais de 8 mil km de SP)
– É estranho, mas, voltando, o alfabeto frígio afinal deriva do grego?
Assunto encerrado. Corta. Dois dias depois é noite de Réveillon. Eles estão em outro dive bar, que ele chama de neighbourhood pub (aqip, eu posso explicar as categorias em pvt, só mandar inbox). Óbvio, é Réveillon, e a ideia é ficar bêbado. Eis que… bate um… fedô.
– Que fedô! (mas desta vez é a mina, eu, que reclama)
– Nossa, verdade, terrível. A gente sentou perto do banheiro
– Verdade, que cagada. (Risos.)
– Cagada, mas, voltando, o alfabeto frígio é contemporâneo ao grego.
Corta. Cinco dias depois. Hora de despedir. No carro a caminho do aeroporto, ele diz.
– Preciso contar um segredo.
– Hm?
– Lembra no Réveillon, que a gente sentiu um cheiro de merda porque tava perto do banheiro?
– Lembro.
– Eu peidei.
Ah, meu, mano, véi. Eu, euzinha, autora dos manifestos mais escatológicos, do MLP, da Solitária Pride. Eu, ali, ouvindo, derreti.
– Jura? Wow (uau). Lembra aquele dia que a gente tava andando na beira do rio e veio um cheiro de merda?
– Lembro.
– Eu peidei.
Risos.
Eu sei que não é sexy. Mas ainda bem, porque mesmo se fosse, não ia dar pra dar vazão ao tesão (a sequência dos acontecimentos foi: uber, aeroporto, vôos para distintas partes do continente, mensagens de celular). Mas, vai, se isso não é amor de vdd, eu não sei o que é. Quer dizer, sempre pode ser gases.
Aquela dor no peito, é verdade, ela sempre pode ser gases.
Mas, ai, acho que não é.
Tomara.
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A imagem que ilustra o post, veja que belissima escolha, ela mescla a ideia de inverno setentrional à de peido rosa de amor, é da fotógrafa Maria Lax e está à venda aqui.
Publicado em Papinho de portão
Sabe essa brincadeira nova (escreva seu nome + glamour + shot no Google e divirta-se com o resultado). Minha xará famosa garota de ipanema arrasa no meus resultados
Eu ia subindo a rua da escola. Tava levando meu filho que nem um pacote de coisa, uma brincadeira nossa, apoio ele na anca como se eu fosse um burrico e a gente dá muita risada. É um colo meio pendurado, e a gente ia subindo a rua rindo, atrasados, apressados, vamoquevamo, mas sem perder a graça.
Uma senhora toda chique estacionava um carrão bem clichê na frente do predião que ficou pronto na rua, sei lá quantas suítes, topetão de laquê.
Ela olhou pra mim com cara de muito espanto e abriu a boca pra falar. Eu já me preparei pra ouvir uma papagaiada qualquer (“credo, carrega o menino direito”, “isso é jeito de tratar o filho”) e fui juntando todas minhas pedrinhas imaginárias na mão pra responder com um “cuida da sua vida, madame”, “você me conhece?”
Então ela falou bem alto:
– Minha nossa, como você é linda!
Orras, minha senhora, eu tô atrasada! E tive que parar de andar e dar meia-volta pra ir lá falar com ela, claro.
– Minha nossa digo eu! Que delícia ouvir isso. Pela manhã! Mudou meu dia. Obrigada.
Sorrimos um sorrisão uma pra outra e eu segui meu rumo repetindo o mantra-mental mais importante do momento na minha opinião: estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos, estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos, estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos, estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos, estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos, estereótipo é uma merda, se livra dos estereótipos.
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Publicado em Papinho de portão
A sexta-feira treze começou mal e terminou assim:
Eu tenho uma gata. Preta. A Shoyu.
Chego em casa, sete e meia da noite. Abro a porta, as luzes apagadas, e vejo, ainda na penumbra, o chão todo coberto por ALGO. Acendo a luz. São penas. Fecho a porta. Atrás dela está o corpo. O corpo de uma pomba toda eviscerada. Tripas de pomba infecta no canto. Penas de pomba infecta pela sala inteira. Presente da Shoyu…
Para fechar a cena: estou de TPM. Resultado: crise de choro.
Euzinha, sozinha, procuro alguém da vila pra me consolar. Encontro apenas a vizinha que é muito brigada comigo… Desisto.
Recomposta, pego uma sacola e uma pá e suspendendo a respiração (e tentando suspender os batimentos cardíacos e a própria consciência) consigo colocar o corpo e suas tripas no saco. Bora terminar o serviço.
Começo a varrer as penas e elas vêm pra cá mas logo voam pra lá. São penas, afinal. E não tem jeito de varrer. As penas cinza, o chão cinza, a gata preta… Continuo varrendo, elas continuam voando e de repente cai a ficha.
Aquela cena, aquelas penas… É tudo tão leve… igual saco de supermercado voando sozinho na rua quando venta. Poesia pura para quem estiver a fim de ver.
“Quanta leveza nas penas do passarinho morto-eviscerado no canto da sala no fim de um dia ruim”.
No caminho pra lavanderia (onde eu estava indo pegar o rodo, um pano e um balde de água com desinfetante pra molhar aquelas penas e acabar com aquela palhaçada), plim: até o tétrico tem um lado leve.
Feliz sexta-feira-treze, agora que ela já terminou.
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Roubei a imagem daqui
As fotos deste post têm pouco a ver com ele, embora dê para traçar uma tangente. É uma série que dois alemães fizeram de comidas que mofaram. Chama Küchendienst e dá pra ver mais aqui: http://cargocollective.com/slobo/Kuchendienst
Eu tinha dezenove anos, era repórter da coluna social, entrava no trabalho às 14h. Deixava minha mochila, pegava um café e saía ligando para as celebridades para perguntar qualquer coisa que pudesse render uma notinha. Liguei pra Angela Ro Ro. Ela atendeu com uma voz das cavernas. Leia todas as frases dela com voz das cavernas:
Ro Ro – Alô.
Eu – Alô, é Angela?
Ro Ro – Sim.
Eu – Oi, Angela, aqui é Heloisa, repórter da coluna Olá, do jornal Agora. Estou te ligando para saber as novidades.
(Observação: essa frase parece estúpida, mas quando você cobre celebridades, é a deixa para a pessoa falar de “projetos”, contratos possíveis, daquilo que ela quer falar. E depois você emenda com as perguntas que de fato quer fazer. É tipo um “tudo bem?” nesse mundo. Ou pelo menos era 15 anos atrás.)
Ro Ro – Novidades? A novidade é que larguei o kit-suicídio.
Eu – … kit-suicídio?
Ro Ro – Álcool, cigarro, drogas, remédios.
Ela tava com 51 anos. Eu não lembro o resto da conversa. Nem posso garantir que tenha sido assim mesmo. Mas em linhas gerais foi. (E, infelizmente, virou uma notinha ou frase ou qualquer coisa do gênero, para que qualquer um pudesse ler, graças a mim.)
Sempre imaginei Ro Ro deitada na cama, tateando o criado-mudo atrás do telefone que tocava, acordando, grunhindo, tossindo, lamentando que alguém interrompia seu sono. E lamento até hoje ter interrompido seu sono. Pra mim, até hoje, aquela é uma voz de ressaca. Mas talvez fosse ressaca de mar. Porque, afinal, ela não estava mais bebendo. Eu acredito nas pessoas (e acho mesmo que isso não é da nossa conta).
Desde então eu tenho um carinho especial por Ro Ro. Ela me deu um tempo. Um prazo. Posso quebrar, cair, rasgar, torcer, chafurdar. Ainda dá tempo de largar o kit-suicídio (no meu caso, I don’t do drugs, ao menos não as prescritas nem as proibidas). Eu sei bem qual é o meu kit. Para os mais conservadores, é álcool e cigarro (transformei um em profissão e o outro em vício; vejo um como cultura, gastronomia, e o outro como cagada mesmo). Mas para mim, o meu fraco mesmo é o desgoverno.
As vezes em que estive mais perto do fundo foram aquelas em que me deixei desgovernar por paixões. Ao mesmo tempo, e aí é que está o truque, depois do caos sempre sai uma versão melhor de mim. Mais esperta, com camadas novas, como qualquer coisa que se deixa apodrecer um pouquinho, queijo maturado, vinho de guarda, carne dry-aged, faisandée (nada como ver beleza no envelhecimento).
Continuo acreditando nisso, tô com 34, tenho carne, pele, viço para gastar. Mas se quando tiver 51 e estiver deitada na cama e uma repórter ligar e me perguntar quais as novas e se eu tiver decidido largar meu kit-suicídio e ela me perguntar “kit-suicídio?” vou dizer:
– Goró, tabaco e paixões.
Ainda faltam 17 anos para eu ter os 51 anos que Ro Ro tinha. E nós nem sabemos se de fato ela largou o kit (embora o fato de que esteja viva aponte para que sim). Tenho pelo menos mais dezessete anos para beber, fumar e apaixonar.
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Publicado em Papinho de portão
Faz algumas semanas, era meados de novembro, no ponto assinalado na foto aconteceu um encontro. A mulher estava esperando o ônibus no mesmo ponto em que eu pego o 209-P para ir trabalhar. Ela me chamou a atenção de cara: chegou sorrindo e fumando e olhando pro lado errado. Os ônibus vinham daqui, mas ela só olhava para lá. Pensei: “que doida!”, me identifiquei, fui com a cara dela e fiquei observando.
Ela acabou o cigarro, apagou no chão e fuçou a bolsa atrás de um chiclete. Minutos depois, abriu um sorrisão e entendi na hora a história de ela olhar pra contramão.
O cara vinha pedalando pela ciclovia, olhando reto pra ela. Parou a bicicleta bem na frente do ponto. Ela fez que ia atravessar a Sumaré sem nem olhar (eu, sobressaltada, quase fui impedir, o semáforo tinha acabado de abrir), mas voltou das nuvens e esperou os carros passarem (o meu ônibus passou também, mas eu decidi ficar para ver a cena).
Ele não desceu na bicicleta, só mudou um pouco o jeito de apoiar a bunda no selim. Ela chegou perto, tirou o chiclete da boca e eles se beijaram demoradamente. Ela segurando o chiclete na mão. Uma graça. Pareciam dois adolescentes — o chiclete na ponta do dedo reforçava o clima colegial –, embora os dois parecessem mais de trinta anos. O cara com certeza, a barba, bem grande, toda grisalha. Enquanto eles conversavam — foram no máximo dez minutos de papo — ela carinhava a barba dele e ele apertava os braços dela, de um jeito que parecia um explorador de relevo, um topógrafo. Foi uma bela cena de namoro. Se despediram com outro beijo demorado, ela flutuou de volta até o ponto e ele foi embora pedalando e olhando para trás.
Passou o 209-P e para minha surpresa ela entrou também. Sentou num banco daqueles ao contrário, enfiou os fones de ouvido e ficou olhando pro nada com aquela cara de quem acabou de dar uma namoradinha. Eu fiquei pensando na graça da coisa. Ela perdeu o ônibus para beijar na avenida e eu perdi o ônibus para ver ela beijar na avenida. Simpatizei com a moça, com a tarde, com o ônibus, com os astros e com os namoros expressos na ciclovia.
Um tempo depois, já começo de dezembro, vi a moça de novo no ponto de ônibus. Ela chegou fumando, desta vez de óculos escuros e fones já enfiados no ouvido. Encostou num poste toda séria. Fiquei agitada, um pouco preocupada, quis ir falar com ela, contar como ela afetou meu dia semanas antes. “Oi, tá tudo bem com você? Como vai o namoro? Sabe, eu vi um encontro seu com seu gato ciclista aqui algumas semanas atrás e achei tudo tão lindo que até perdi o ônibus para acompanhar a cena até o final.” Mas achei que ela ia me achar uma maluca.
Fiquei na minha, de olho na dela. E ela ficava com um olho no fluxo e outro na contramão. Dava uma espiada na ciclovia e voltava a olhar pro lado convencional, de onde vêm os ônibus. Temi pelo pior. Será que terminaram? Será que ele terminou com ela ou que ela terminou com ele? Supus que foi ele. Ela estava obviamente jururu e aquelas olhadas para a contramão me fizeram achar que ela tinha esperança de vê-lo. Imagino que os dois façam aquele caminho rotineiramente, talvez para o trabalho, talvez outra coisa, as duas vezes que a vi foram em segundas-feiras, pode ser para a terapia ou natação, pode ser que um vá para o trabalho e o outro vá para aulas de alguma coisa, não sei, nunca vou saber.
Hoje, enquanto esperava o 209-P para vir trabalhar, a cidade meio vazia, esse ano que não termina, vi o vazio do lugar em que eles se beijaram. Talvez eles estejam na praia felizes esperando o réveillon chegar, talvez eles estejam cada um num canto tristes com o fim do namoro só esperando o ano terminar. Talvez um esteja na praia esperando o réveillon chegar com outra companhia e o outro esteja triste num canto só esperando o ano terminar. Nunca vou saber. Se uma dia encontrar com ela de novo, vou tentar perguntar. E tentar agradecer que ela adicionou ao meu mapa afetivo de São Paulo um coraçãozinho na ciclovia da Sumaré.
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Publicado em Papinho de portão
Eu não sei quantos anos eu tinha e lembro como se fosse filme. É minha única lembrança viva da casa da Tia Maria, uma tia-avó por parte de mãe que morava num sítio perto de Campinas. Chegamos lá e a neta dela, a Cris, que na minha memória é alpinista (mas isso pode ser fantasia de lembrança de infância — não é, acabei de confirmar com minha mãe) perguntou se eu queria suco de maracujá.
Eu adorava (e ainda adoro) suco de maracujá, mas sempre tive (e ainda tenho) um pouco de medo da frustração dolorosa de esperar um suco natural e receber um maguary, um del valle (essa camada de medo veio mais tarde, porque quando eu era criança não tinha suco de caixinha) ou, pesadelo dos pesadelos, um tang.
Mas naquele dia estava impetuosa e aceitei o suco. A Cris, que é uma mulher muito bonita, seguiu numa direção inesperada: em vez de ir pra cozinha, foi para a cerca. Apanhou maracujás que enfiou na blusa dobrada (como eu amo essa técnica, essa bolsa escondida em todas as camisetas do mundo) e então chamou a gente para a cozinha, abriu os maracujás, bateu o suco e me deu.
Foi uma experiência perfeita no panorama de sucos. Expectativas alcançadas, superadas até. Lembro da minha admiração, o exemplar mais fresco possível, o copo ideal de suco de maracujá.
Naquele dia, naquela cozinha, falamos sobre a vizinha da Tia Maria, uma senhora excêntrica que tinha muitos cachorros e era muito querida pela minha família. Aquela figura que ocupou minha cabeça por anos e anos era só a Hilda Hilst. Eu lia as colunas dela no jornal de Campinas e ficava feliz e escandalizada que ela era a vizinha da Tia Maria. Com o tempo, é lógico, virei fã da HH (com quem ainda por cima divido iniciais, HH de Heloisa Helena). Depois ainda fiz aula de ioga com um cara super próximo dela. E esses pontos me fazem acreditar que somos próximas, separadas apenas por uma cerca coberta por um pé de maracujá do qual eu já tomei o suco. O suco ideal.
Tem ainda a história do Nelson, meu tio de segundo grau, casado com a Neza, filha da Tia Maria — todos moravam nesse sítio. Ele é um físico importante (dá um google, as tags vão de MIT a Embraer, passando por Unicamp) e, na minha cabeça de criança, isso queria dizer que ele era um cientista maluco.
Então naquele dia tomei suco de maracujá feito pela minha prima de segundo grau alpinista com maracujá da cerca que dividia a casa do cientista maluco e da poeta excêntrica. Foi um dia e tanto.
Eu sempre soube que desde então um dos meus objetivos nesta vida é ter um belo pé de maracujá, para tentar trazer para perto a poesia, a ciência e a aventura dos personagens deste dia. Mas foi só hoje, quando acordei e fui esquentar a água para passar café, que me dei conta de que ao menos este objetivo está cumprido.
Este é o meu pé de maracujá visto da minha cozinha. Não dá perceber, mas ele é imenso, indomável e cheio de poesia, ciência, aventura e lagartas. Agora só falta as mamangavas descobrirem que ele está aqui para polinizarem as flores para nascerem frutos que eu vou apanhar na camiseta dobrada, bater no liquidificador e tomar o suco e fingir que sou vizinha da Hilda Hilst.
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Eu sempre esperei ele me pedir alguma coisa. Qualquer coisa para eu retribuir os inúmeros presentes que ele já me deu. Finalmente veio. Era véspera do casamento dele. Eu fui madrinha e estava feliz demais. O casamento era quarta-feira de manhã. Então na terça, fim do dia, mandei um e-mail. “Quer que eu leve alguma coisa?”
“Se você achar uma gardênia, eu queria casar com uma gardênia na lapela e não achei.”
Era minha chance. Parei tudo o que estava fazendo e fui procurar uma gardênia. Entrei em contato com floriculturas de grande porte, floriculturas online, floriculturas especializadas, nada. “Tenta ir na Ceagesp na madrugada.” Não dava. Resignei, dormi, acordei, coloquei uma roupa de “casamento de dia, num dia de semana”, fiz o embrulho do presente e fui. No caminho, decidi fazer a última tentativa. Apesar de estar muito atrasada, parei na floricultura da esquina.
Fui direto para a parte de flores de corte. Vi um balde e achei que eram elas. “São gardênias”, perguntei e exclamei. O vendedor: “não, filha, isso não é gardênia não”.
Quase surda de tristeza, quase não ouço ele dizer: “As gardênias estão ali. Só tem em vaso.”
Eram seis vasos no chão, todos os seis só com botão. “Chegaram hoje cedo, ainda leva uns dias para abrir” ia dizendo o moço quando vimos que tinha uma, só uma, com só um botão aberto. Contei pro vendedor a história. Ele acreditou pouco, mas disse: “só pode ser bom agouro”.
Gastei os R$ 10 que eu ia usar para o táxi e fui a pé, sandália machucando o calcanhar. No caminho, celular tocando, cadê você, fiz na cabeça a piada ruim “em casamento sem noiva, é obrigação da madrinha atrasar”, cheguei muito atrasada, bolha nos pés, o presente numa mão e o vaso de gardênia na outra.
Todos ficaram felizes, menos a moça do cartório, que estava brava com o atraso. O casamento foi lindo e a gardênia ficou lá, from vase to lapel, perfumando de leve os muitos brindes que se seguiram.
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